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Não conseguindo dormir, a Madre Superiora resolve ir à cozinha provar qualquer delícia. Ao passar pelo corredor dos cómodos repara que o quarto do Padre confessor ainda se encontra iluminado e resolve bater-lhe à porta para se aconselhar.
- O Senhor Padre desculpe o adiantado da hora, mas a minha alma está mortificada e necessito descansá-la.
- Por quem sois, Madre, disponha dos meus serviços se de alguma maneira lhe puder ser útil.
- Sabe, Senhor Padre, quando os nossos olhos se encontraram o senhor despertou-me recordações antigas, imagens distantes que eu pensava já ter fechado a sete chaves. O Senhor Padre lembra-me demasiado uns olhos castanhos profundos e um sorriso doce que conheci há muitos anos. E eu que pensava já ter o invólucro da alma em profundo descanso, dou agora comigo sentindo ainda o calor do corpo dele passando para o meu, guardando na minha boca o paladar do seu beijo, recordando-lhe a suavidade do toque e a urgência em ter-me. E a minha atenção e o meu corpo ficam presos nestes momentos e não consigo pensar em nada mais.
- Sabe, Senhor Padre, há quase trinta anos que trago comigo esta carta. Enviou-ma ele, dias antes de fazer os votos, mas agora não passo uma noite sem relê-la. Na quietude do meu quarto, busco nestas palavras algum conforto e revejo, também aqui, aqueles olhos castanhos e lábios doces.
Dizendo isto, desdobrou uma pequena folha de papel amarelecida pelo tempo, que leu em voz saudosa.
“… Tu és a luz do sol nascente, chegando pelo norte. És a folha do vento impulsionando a folha. És o recanto que eu quis, a mão que aponta o verdadeiro caminho, o horizonte, a flor, o céu e o espinho. És o fogo que arde nas minhas entranhas e que me aquece no inverno. És a beleza do mar, és o gosto do amor, a tentação, a vontade, o desejo. És a vida inocente, o prazer de um presente. És o porto, o oásis, a esperança, a volta, a calma da paz, o turbilhão da revolta. És ternura, respeito, verdade, segredo. És o meu ar, meu espaço, meu céu, meu amor. És o meu pensamento vagando pelo tempo. És um desejo, ansiedade. Quem sabe tu és um beijo? A atracção de um olhar, uma estrela, o cheiro da maresia.
És tudo, enfim… tu és somente tu... meu grande amor!"
- Vê o triste estado em que me encontro, Senhor Padre? Que me aconselha para delapidar tais delírios?
- Tisanas, minha Madre, tisanas, Padres Nossos e banhos frios.
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